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sábado, 14 de maio de 2011

A reinvenção dos craques

É natural a capacidade humana de se adaptar a novas realidades e circunstâncias. Mudar para continuar vivendo e produzindo.
O físico Stephen Hawking enfrenta rara doença degenerativa que paralisa gradualmente os movimentos do corpo. Numa cadeira de rodas, sem força motriz para sequer manter a cabeça erguida e obrigado a se comunicar através de um sintetizador de voz por conta de uma traqueostomia, o autor de “Breve História do Tempo” continua trabalhando, escrevendo, pensando sobre Deus, o mundo e o universo.
No futebol, não faltam exemplos de craques que precisaram se readequar por problemas físicos, mudanças de características ou necessidades de suas equipes e, ainda assim, reafirmaram a genialidade de pés e mentes.
A começar por Ferenc Puskas, o “Major Galopante”. Craque como meia-atacante do Honved e da fantástica Hungria nos anos 1950, embora estivesse sempre na área aproveitando os espaços criados pela movimentação do “falso nove” Hidegkuti no pioneiro 4-2-4 magiar.
Com quilos e mais e fôlego a menos, foi na prática o centroavante com a camisa dez do não menos lendário Real Madrid. Mais à frente no WM (3-2-2-3) meregue, permitia que Di Stéfano, com o nove às costas, armasse os ataques do fantástico campeão europeu em 1959, 1960 e 1966, mundial em 1960 e penta espanhol (de 1961 a 1965). Na temporada 1959-60, aos 33 anos, anotou 49 gols na temporada, marca superada na Europa apenas em 2011 por Messi e igualada (oficialmente) por Cristiano Ronaldo.
No WM (3-2-2-3) do Real Madrid campeão europeu em 1960, Puskas era na prática o centroavante pelo recuo natural de Di Stéfano para armar as jogadas. O húngaro marcou 49 gols naquela temporada.
Já Franz Beckenbauer se reinventou no Bayern de Munique e na seleção alemã criando a função de líbero que só ele soube executar com perfeição. Inspirado no lateral-esquerdo italiano Giacinto Facchetti, defensor com liberdade para atacar na Azzurra e Internazionale, o elegante meiocampista vice-campeão mundial em 1966 e semifinalista em 1970 foi jogar atrás dos zagueiros para desfilar sua classe por todo o campo.
Fala o “Kaiser”: “Ele (Facchetti) marcava bem e atacava ainda melhor quando se projetava à frente, pela lateral. Pensei, então, que atuando atrás dos zagueiros, saindo para o jogo, eu teria a vantagem de atacar pelos dois lados. Foi o que fiz.” (trecho extraído do livro “As melhores seleções estrangeiras de todos os tempos” de Mauro Beting) Fez melhor que todos e liderou o bi mundial da Alemanha em 1974 e o tri continental dos bávaros de 1973 a 1976.
A Alemanha campeã mundial em 1974: 4-3-3 básico com Franz Beckenbauer atrás dos zagueiros sem a bola e armando o jogo por todo o campo nas ações ofensivas. O mais perfeito líbero.
Lothar Matthaus foi o último líbero na acepção do termo que se confunde no Brasil com “zagueiro de sobra”. Também no Bayern e na “Nationalmannschaft”. O volante que anulou Zico no Maracanã no amistoso Brasil 1×0 Alemanha em 1982, foi o melhor marcador de Maradona no México em 1986 e o craque do Mundial na Itália quatro anos depois como meia voltou a recuar no final da carreira. Um autêntico “camaleão”.
Jogou até os 40 anos e disputou em 1998 sua quinta Copa do Mundo atuando atrás do zagueiros, mas saindo para armar como o ídolo Beckenbauer. “Eu poderia facilmente fazer esse trabalho até os meus 50 anos”, garante Matthaus em entrevista ao site Trivela.
Zico foi outro a recuar no fim da carreira. Em 1989, último ano jogando profissionalmente no Brasil, o Galinho virou armador do Flamengo de Telê Santana. Para encaixar Renato Carioca, jovem meia-atacante técnico, rápido e de fina sintonia com Bebeto, Telê pediu a Zico, então com 36 anos e joelhos em frangalhos, que fosse pensar o jogo mais atrás.
“Foi uma necessidade da equipe. Eu ocupava espaços sem a bola, mas quem marcava era Ailton, Zinho e o Alcindo, que voltava pela direita. A vantagem era não jogar de costas, com um marcador no cangote”, explica o eterno e máximo ídolo rubro-negro em entrevista ao blog.

Zico armando mais atrás no Flamengo em 1989 para Renato Carioca encostar em Bebeto. Aílton, Zinho e Alcindo corriam pelo craque veterano.
Na Itália, Zico teria sido chamado de “regista”. Não pela experiência e moral de “diretor”, mas por ser o meio-campista a pensar o jogo desde a saída de bola. Como Andrea Pirlo, meia-atacante de origem que virou volante no Milan e na seleção italiana.
No time rossonero campeão da Liga dos Campeões e Mundial em 2007, Gattuso e Ambrosini “quebravam” a bola que chegava limpa a Pirlo. Sem o poder de marcação de seus parceiros de “volância” nem a dinâmica para criar à frente como Seedorf e Kaká no 4-3-2-1 (ou “Árvore de Natal”) de Carlo Ancelotti, Pirlo foi uma espécie de líbero atrás dos volantes e viveu o último grande momento de sua vitoriosa carreira, já em curva descendente após seguidas lesões.
No 4-3-2-1 do Milan 2007, Pirlo ficava na sobra do meio-campo recebendo a bola limpa e iniciando as jogadas como 'regista'.
Na Itália de Pirlo, Leovegildo Júnior mudou para voltar às origens. Meia nas divisões de base, virou lateral no Flamengo por força das circunstâncias. Destro, foi para a esquerda quando Toninho, lateral da seleção brasileira à época, chegou à Gávea. Mas no Fla ou na seleção, sempre rodou por todo o campo armando as jogadas com toque fácil e habilidade.
Aos 30 anos, cansado de correr atrás de pontas, encarou no Torino o desafio de novamente atuar no meio. “Se fosse para jogar de lateral não teria ido. Mas o técnico, Gigi Radice, me queria no meio, armando as jogadas”, esclarece Júnior ao jornalista Paulo Guilherme em “Os onze maiores laterais do futebol brasileiro”. A readaptação foi rápida e o “Capacete” nunca mais abandonou o setor mais adequado à sua inteligência tática e categoria. Jogou a Copa de 1986 e foi campeão estadual e brasileiro pelo Flamengo em 1991/92 como craque e capitão, um ano antes de deixar os gramados.
O vascaíno Felipe segue o mesmo roteiro. Lateral-esquerdo na base do time cruzmaltino, foi lançado nos profissionais por Antônio Lopes em 1996. O técnico, porém, logo percebeu que o talento e a habilidade do menino não podiam ficar restritos ao lado do campo. Plantou Nasa como um volante-zagueiro e liberou o jovem como um ala/meia no time campeão brasileiro de 1997.
O “Delegado” também foi o primeiro a efetivá-lo no meio-campo. Com a contratação de Gilberto para o Mundial Interclubes 2000, a saída lógica foi deslocar Felipe, inicialmente como volante, depois meia organizador. No Flamengo em 2004, jogou até no ataque. De volta ao Vasco, é volante-meia no 4-3-1-2 de Ricardo Gomes. Aos 33 anos, marca e corre menos, mas pensa e cria por todo o time.
No Vasco campeão brasileiro de 1997 comandado por Antônio Lopes, Felipe já tinha liberdade para armar jogadas no meio e aberto pela esquerda, com a cobertura de Nasa, o volante-zagueiro do 4-2-2-2 cruzmaltino.
Na década que se inicia, o caso mais emblemático é o do galês Ryan Giggs. Autêntico “left-winger” (meia aberto pela esquerda) rápido e driblador no 4-4-2 ortodoxo de Alex Ferguson, comanda aos 37 anos o Manchester United como meia central ofensivo, ou “box-to-box”. Arma, lidera, marca gols, circula eventualmente pela esquerda como nos velhos (mas não melhores) tempos e ainda combate, com o auxílio de Carrick e Ji-Sung Park, no virtual campeão inglês e finalista da Liga dos Campeões 2010/11. Um meio-campista completo.
Palavras de Sir Ferguson: “É um maravilhoso jogador e homem. Para ter o desejo e capacidade de jogador no mais alto nível em uma posição que exige muito fisicamente na sua idade requer uma pessoa especial. Ele ainda tem sido eleito o melhor em campo e sua experiência é vital para os jovens jogadores no elenco.” Impossível contestar. (Agradecimentos ao amigo Michel Costa do blog “Além das Quatro Linhas”, que sugeriu no Twitter o acréscimo do exemplo do galês)
Ryan Giggs comanda o meio-campo no 4-4-2 (ou 4-4-1-1) do United em 2011. Um 'box-to-box' experiente e talentoso.
Quem precisa repensar e reinventar suas carreiras se ainda quiserem fazer parte dos planos de Mano Menezes para a Copa no Brasil em 2014 são Kaká e Ronaldinho Gaúcho.
O camisa oito do Real Madrid, após problemas no púbis e nos joelhos que prejudicaram sua performance no Mundial da África do Sul, não parece ter mais condições de apostar nas arrancadas constantes e irresistíveis desde a intermediária que varriam defesas na década passada. É hora do melhor do mundo de 2007 trabalhar um estilo mais técnico e cadenciado para ser a opção de Mano na ausência de Ganso ou, na melhor das hipóteses, companheiro do maestro santista na organização do escrete canarinho. Investir na visão e na precisão, nem tanto na força.
Como fez Ronaldo após estourar os joelhos. Os “sprints” do atacante ficaram mais raros. A técnica, porém, permaneceu intacta. Ou até melhorou, como nos oito gols na Copa de 2002 e em outros tantos por Real Madrid, Milan e Corinthians. Um Fenômeno não tão veloz, mas não menos letal. Até neste aspecto seguindo Romário, artilheiro tão implacável quanto minimalista na reta final da carreira. Mais posicionamento que explosão.
Já Ronaldinho deve refletir sobre o que Zagallo disse em evento com Parreira e Mano Menezes para a Copa 2014: “Ele é um jogador de 30 metros, que vai da intermediária adversária para dentro do gol”. Vanderlei Luxemburgo, treinador craque no Flamengo, não discorda: “O Zagallo que é uma pessoa do ramo do futebol viu que aproximar o Ronaldinho como atacante é bem melhor do que deixá-lo como meia.”
Nos últimos jogos, ficou claro que sua movimentação pela esquerda também está prejudicada. O Bola de Ouro 2004/05 não consegue driblar seus marcadores com a facilidade de antes. A falta de um velocista no ataque rubro-negro também dificulta as mágicas inversões de bola e os lançamentos. A alternativa, então, é ficar mais perto da área adversária e aperfeiçoar as conclusões, com pés e cabeça. Definir em um ou dois toques na bola. Transformar-se individualmente para colaborar com o coletivo. O ataque pode ser o “atalho” para voltar à seleção, mesmo com a duríssima concorrência.
Kaká no meio mais pensando que correndo; Ronaldinho no ataque para decidir em um ou dois toques: alternativas víaveis para os craques voltarem à seleção.
Mudar na maioria das vezes é doloroso e deixa a impressão de fracasso nos esforços anteriores. Pode ser a melhor saída ou a única alternativa. A chave é ter coragem e humildade para se reinventar. Nos campos e na vida.

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